"Eu, que não gostavaaposta blaze doubleser chamadoaposta blaze doublepirata, comemoro minhas vitórias tapando o olho"

Vice-campeão mundialaposta blaze doubletaekwondo e um dos destaques do Brasil nos Jogos Sul-Americanos nesta sexta, Icaro Miguel recorda acidente que o fez perder a visão do olho direito e desabafa sobre preconceito

Por Icaro Miguel,aposta blaze doubledepoimento a Marcelo Barone — Rioaposta blaze doubleJaneiro


Eu confesso que a minha lembrança do diaaposta blaze doubleque perdi a visão do olho direito é vaga. Mas eu lembro do momento do acidente. Era um feriado, uma sexta-feira, por volta das sete da noite. Naquele dia, eu havia passado a tarde toda brincando na piscina com meus amigosaposta blaze doubleum sítio,aposta blaze doubleBetim. Fiquei com os olhos muito irritados pela areia, pelo cloro da água. Minha mãe, então, pingou água boricada nos olhos das minhas irmãs, e eu, o caçulinha, fiquei por último. Eu tinha seis anosaposta blaze doubleidade.

Ícaro Miguel não desistiu do esporte mesmo diante das dificuldades — Foto: Arquivo Pessoal

Quando ela pingou uma gota no meu olho esquerdo, eu reclamei que ardeu. E, como já tinha aberto essa água há muito tempo, ela esvaziou o potinho no vaso sanitário e tacou no lixo. Em seguida, pegou um frasco no guarda-roupa e andou na minha direção. O frasco era diferente. Tinha letrinhas vermelhas, enquanto oaposta blaze doubleágua boricada, verde. Na hora eu não atinei, era criança. Deitei na cama e segurei o olho direito assim (abre com a mão) para ela pingar.

Comecei a gritar. Era amônia. Foi uma loucura. Ela correu comigo até o chuveiro. Eu gritava e chorava. Foi uma queimação grande, uma dor muito forte. Fomos no pronto-socorro, e os médicos colocaram um tampão. Era o que dava naquele momento. Estava tudo fechado devido ao feriado. Só me consultei com um oftalmologista na segunda-feira.

O médico receitou uma infinidadeaposta blaze doubleremédios e colírios. E eu precisava ir todo dia ao consultório para trocar o curativo. Corri o riscoaposta blaze doubleperder o globo ocular. Minha bochecha ficou ferida por tirar e colocar o esparadrapo toda hora. Esterilizamos o quarto. Havia riscoaposta blaze doubleinfecção. Durante três meses, pinguei colírio no olho lesionadoaposta blaze double15aposta blaze double15 minutos, incluindoaposta blaze doublemadrugada. Uso o lubrificante até hoje. Foi uma fase muito difícil. O olho ficou inchado pela secreção, remela, sei lá (risos).

Diferença entre os outros ficou mais aparente com o passar dos anos — Foto: Arquivo Pessoal

O tratamento deu certo. Depois que eu tirei o tampão, recuperei 90% da minha visão. Eu apresentava uma evolução gigante a cada consulta. Os médicos pensavamaposta blaze doubleum transplanteaposta blaze doublecórnea, e meus pais perguntaram a mim: "Você quer fazer a cirurgia no olho?". Eu era muito novo, não queria. Meu pai pediu a opiniãoaposta blaze doubleuma criançaaposta blaze doubleseis anos, é muito louco isso (risos). Eles decidiram que eu não faria por conta disso. O curioso é que, se eu tivesse feito naquele momento, aos seis anos, eu não teria entrado no taekwondo, aos oito, porque eu não faria nenhum esporteaposta blaze doublecontato. E isso permitiu que me tornasse o atleta que sou hoje. Foi a primeira recusa ao transplante.

aposta blaze double Quinze anos depois, o perdão

Tudo parecia normal. Comecei no taekwondo e trilhei meu caminho no esporte. Mas aos 16 anos, tive mais uma perda. É difícil até para os médicos quantificar essa porcentagemaposta blaze doublevisão. Eu diria queaposta blaze double90% fui para 80%. Ainda estava legal. Tinha acabadoaposta blaze doubleser vice-campeão brasileiro, minha carreira era iniciante mas ia bem. O médico falou do transplanteaposta blaze doublecórnea, senão eu perderia a visão. Amanhã, depois, sei lá. Fato que perderia. Levantei e fui embora, nem esperei ele acabaraposta blaze doublefalar. Estavaaposta blaze doubleuma negação gigantesca. Toquei minha carreira.

Icaro Miguel e os pais, Margarete e Oroni — Foto: Arquivo Pessoal

Em 2015, a conta chegou. Eu já estava treinandoaposta blaze doubleSão Caetano (SP), a minha carreira estava alavancando. De repente, a visão começou a pioraraposta blaze doubleuma semana para outra. Em um espaçoaposta blaze doubletrês meses, saiuaposta blaze double80% para menosaposta blaze double10%. Eu levei um susto. Deu merda. O médico não sabia explicar. Falou que era fazer o transplante ou perder a visão.

Essa foi a única consulta médica que a minha mãe não me acompanhou. Antes disso, ela havia ido a todas, todas mesmo. Quis ir sozinho, apesaraposta blaze doubleela ter esperneado. Queria a liberdadeaposta blaze doublefalar com o médico sem machucá-la com alguma pergunta que eu poderia fazer.

Eu nunca culpei a minha mãe pelo acidente. Pelo contrário, eu sempre tentava esconder que isso me incomodava porque imaginava o peso que teria pra ela. Foi um dia muito forte. O médico falou que me colocaria na fila do transplante, que não dava para segurar mais. E eu só pensava: "Minha carreira acabou".

Chegueiaposta blaze doublecasa chorando muito, estava triste demais. Eu me lembro como se fosse hoje. Meu pai estava no fogão à lenha mexendo o angu. Eu contei para ele o que tinha acontecido. Fiquei meia hora chorando, e ele não falou nada. Ficou só mexendo o angu. Quando as lágrimas acabaram, quando eu não tinha mais pulmão, ele se virou, olhou por cima do ombro e disse: "Filho, você viveu a vida toda assim, sempre correu atrás. Vai jogar tudo fora por que uma pessoa falou que você não vai poder lutar mais?". Aquilo fez a chave virar. Qual é o normalaposta blaze doubletodo mundo? Resolver o problema e deixar o esporteaposta blaze doublelado. Não era o que eu queria, não era uma opção. Bati o martelo que não faria. Foi fo**. A família estavaaposta blaze doubleclimaaposta blaze doublevelório.

Icaro Miguel tem ótima relação com a família — Foto: Arquivo Pessoal

Foi no dia seguinte que a minha mãe me pediu desculpas pela primeira vez desde o acidente. Eu sempre subo até o quarto dela para dar um beijoaposta blaze doublebom dia, porque sou o primeiro a acordar, e desço para fazer as minhas coisas. Dessa vez, ela estava acordada, quieta. Tinha acontecido alguma coisa. Foi quando ela falou: "Você me desculpa, filho?". E começou a chorar. Esse dia foi fo**. Ela falou que tinha sido sem querer, que não teve a intenção. Eu nunca contei isso para ninguém com essa riquezaaposta blaze doubledetalhes, velho. Eu respondi que sabia disso, que era um problema que eu resolveria. Ela demonstrou que aquilo sempre a machucou. Todo mundo sabia, mas ela mostrou que precisava desse pedido.

Hojeaposta blaze doubledia é bem tranquilo, ela faz piada, a gente brinca. Nossa relação é assim. Teve um dia que foi pesado (risos). Estávamos brincando, e ela falou: "Vou te bater". E eu respondi: "Só não joga amônia" e saí (risos). Até o pessoal que estava perto se assustou: "Cara***, velho!". Essa daí não vou fazer mais, não.

aposta blaze double "Me sentia um bosta"

Depois que cheguei a menosaposta blaze double10%aposta blaze doublevisão, nunca mais eu recuperei. Deus permitiu que eu enxergasse na infância para, talvez, aprender o taekwondo que eu iria aplicar anos depois. Se eu não tivesse essa visão quando criança, não teria aprendido tudo da maneira que aprendi e aplicando agora que tenho a visãoaposta blaze doubleum olho só. Tive o problema, recuperei, aprendi o taekwondo, perdi a visão e fui aplicar o que aprendi lá atrás. Eu brinco que minha visão piorou, e meus resultados melhoraram. Fui campeão brasileiro adultoaposta blaze double2016, no ano seguinte entrei para a seleção brasileira, fui vice-campeão mundial, campeão pan-americano, assumi a liderança do ranking.

Mas não foi fácil reaprender, me adaptar, lutar sem enxergar direito. No começo, eu me sentia um bosta, parecia que tinha voltado à faixa-branca. Era como começar do zero. Eu sabia chutar, mas não sabia mais acertar. O que adiantava? Eu não sabia acertar, cara***! Parecia que todo mundo era mais alto que eu.

Lutador precisou se adaptar para voltar a chutar com eficiência — Foto: Reuters

Foi difícil. Eu ia para o treino e não acertava um chute na galera. Espaço e tempo são duas das principais valências do taekwondo. O pessoal ficava parado, e eu acertava o vento. Tentavaaposta blaze doublenovo e dava uma canelada, quando, na verdade, era para atingir com a ponta do pé, onde tem o sensor que toca o colete.

Eu treinei muito por conta própria, sozinho. Eu tampava o olho esquerdo e tentava só com o direito, o ruim. Eu nem sabia se fazia sentido pra ciência ou não. Fui lá e fiz. Eu precisava resolver esse problema. A todo momento eu tinha esse olhar (risos)aposta blaze doubleenxergar a coisa como algo a ser resolvido. A minha noiva me ajudou muito nesse período, ela segurava a raquete para que eu chutasse. Fui tentando, tentando e melhorando. Tinha dificuldade para lutar na curta distância, e hoje meu diferencial é esse, é onde eu mais pontuo. É uma loucura, nem sei explicar.

aposta blaze double Preconceito e aceitação

Em termosaposta blaze doublezoação, minha infância foi tranquila, porque a diferençaaposta blaze doublecor nos olhos não era muito aparente. Você só notaria se ficasse olhando fixamente. Quando eu estava para sair da escola é que rolava piadinha, a galera tirava um sarro. A minha irmã Luana era com quem eu brigava mais, ela pegava no meu pé. Ela me provocava muito, me chamavaaposta blaze doublezarolho, vesgo, pirata. O que me incomodava era elaaposta blaze doublecasa, mais do que o pessoal na rua.

Quando ficou mais visível eu passei a me incomodar. Eu não me aceitava. Por que aconteceu isso comigo? Por que não sou igual a todo mundo?

Esse questionamento vinha pelo olhar diferente das pessoas. Até mesmo depois que eu decidi continuar no esporte, ficava na dúvida, se eu havia tomado a decisão certa. Eu me via diferente, eu me rejeitava também.

Eu achava muito feio. Cogitei várias vezes comprar uma lente corretora para pessoas monoculares para deixar os olhos da mesma cor. Foram várias e várias vezes... mas acabei não comprado por vergonhaaposta blaze doublepessoas que estão ao meu redor. Era vergonha dos dois lados:aposta blaze doubleser daquela forma eaposta blaze doublemostrar que eu sentia vergonha. Aquela coisaaposta blaze double"ah, está escondendo". A aparência me incomodava muito.

Icaro Miguel conta que tinha vergonha do seu olho — Foto: Arquivo Pessoal

O olhar diferente não vinha muito dos adversários, que me respeitavam. Mas dos amigos deles. As pessoas gritavam na arquibancada: "Vai perder para o cego?". Na minha cabeça, só passava o seguinte: "Não só vai perder, como vai continuar apanhando do cego". Eu fui aceitando isso aos poucos, acompanhando o desenvolvimento da minha carreira. Eu melhorei como ser humano e meus resultados esportivos evoluíram junto. Eu nasci para impulsionar pessoas.

As pessoas ainda ficam olhando. Uma vez estavaaposta blaze doubleum táxi, e o motorista perguntou o que eu fazia. Eu disse que era atletaaposta blaze doubletaekwondo, que lutava. Ele me viu pelo retrovisor e apontou: "E esse olho aí?" Como você luta assim?". Eu falei que lutava no convencional, porque não existe atletas cegos no para-taekwondo. Eu expliquei a história da minha vida, e ele passou a me admirar.

No fimaposta blaze double2017, eu tive a oportunidadeaposta blaze doubleparticipar do edital das Forças Armadas. Eu era quem mais pontuava, mas não passei na fase médica. Eu não tinha patrocínio. Eu vivia da ajudaaposta blaze doublecustoaposta blaze doubleSão Caetano e o Bolsa Atleta. Era R$ 1500 por mês e amém! Como pagar as viagens? E a vida? Eu era o cara para estar dentro, e não consegui pela minha deficiência. Foi ali que virei a chave. Está cego? Vai cego! Tá com dinheiro? Vai! Está sem dinheiro? Vai assim mesmo! Esse episódio foi o "vaiaposta blaze doublequalquer jeito". Eu comecei o anoaposta blaze double2018aposta blaze double56 no ranking mundial, traçando o planoaposta blaze doublechegar no top 20, ser cogitado nas Olimpíadas, no Bolsa-Pódio. E fecheiaposta blaze double11º. Foram 11 eventos internacionais. Ganhei nove medalhas, seteaposta blaze doubleouro.

Atleta é referência para a nova geração e pose "pirata" virouaposta blaze doublemarca — Foto: Arquivo Pessoal

Eu sempre tive a consciênciaaposta blaze doubleque a minha deficiência era um problema que eu tinha. E o foco foi sempre resolvê-lo. Se eu não acerto o chute, vou passar a acertar. Sempre acreditei no fazer. Quando a galera entende que é ir lá e executar, as coisas se tornam mais fáceis. Passei por problemas, dificuldades financeiras. Eu acho que fui acima da média por isso, o meu diferencial foi colocar na cabeça resolver ao invésaposta blaze doublechorar,aposta blaze doubleremoer.

Eu, que não gostavaaposta blaze doubleser chamadoaposta blaze doublepirata, desde 2018, quando venci o então campeão olímpico, comemoro minhas vitórias tapando o olho. Virou minha marca. Antes, escondia o assunto para a mídia e para as pessoas, porque eu achava que os adversários poderiam saber do meu nívelaposta blaze doubledeficiência. Hoje é 100% tranquilo.

Meu sonho é trazer um ouro olímpico, sonho com isso todos os dias. Quero levar essa crença positiva a todos os lugares. Uma medalha sem um propósito por trás não valeaposta blaze doublenada. Eu nasci para fazer história.

* Icaro Miguel,aposta blaze double27 anos, é mineiro, monocular e fundador do Instituto batizado com seu nome. Lidera o ranking olímpico e mundial do esporteaposta blaze doubleduas categorias (+80kg e -87kg). Representou o país nos Jogos Olímpicosaposta blaze doubleTóquio. É bicampeão do Pan-Americanoaposta blaze doubletaekwondo, vice-campeão mundial, medalhistaaposta blaze doubleprata nos Jogos Pan-Americanos e bronze do Grand Prix Series.